José Octávio de Arruda Mello, historiador de ofício,
integrante dos IHGP e APL, colaborador de A União, editor de Revista do UNIPÊ.
Autor de História da Paraíba – Lutas e Resistência (2ª impressão da 10ª ed.,2007).
Visto
à distância, o Liceu Paraibano, onde estudei, cursando os ginásio e clássico,
de 1951 a 57, assemelha-se a um túnel – o túnel do tempo.
Atravessando-o,
nele ingressei guri, aprovado em disputado exame de admissão, e saí homem feito
ou quase isso, sete anos depois. Esse conduto foi também o da cidade, que se
deslocou do centro para a praia, pela porta do Jardim Miramar, instalado entre
1949 e 50, e da sociedade pessoense, que transitou do patriarcalismo das elites
agrárias para a classe média dos estamentos urbanos.
foto de o norte.com
Várias entidades, como os institutos de previdência, dominantes no período, colocaram-se a serviço dessa transição e o Liceu – rebatizado Colégio Estadual de João Pessoa, devido a seu homônimo de Campina Grande, em 1953 – foi uma delas.
Não
era, como se tem propalado, estabelecimento de pobres, mas de classe média –
média-média, e, sobretudo, média-baixa. O povão dos bairros desasnava nos
grupos escolares e ficava por aí mesmo. Já as elites patrimoniais valiam-se do
Diocesano Pio X – que rivalizava com o Liceu nos desfiles escolares e jogos
estudantis – e Colégios Lurdinas e Nossa Senhora das Neves, estes reservados às
moças.
O
excelente livro de Jean Blondel – As Condições da Vida Política do Estado da
Paraíba (1957,94) – delineia a cidade de João Pessoa e Estado da Paraíba da
época, sendo este de natureza algodoeiro-pecuária e açucareira. Os bairros da
prmeira compreendiam o Centro – Varadouro(Comércio), Tambiá, Trincheiras,
Montepio, Roggers e Cordão Encarnado – Jaguaribe, Torre/Santa Júlia, e os
arrabaldes da Ilha do Bispo, Varjão, Cruz das Armas, Oitizeiro e Mandacaru. Os
distritos intitulavam-se Gramame, Vila do Conde, Alhandra, Pitimbú, Acaú e
Cabedelo a que se incorporava a aglomeração de Tambaú.
Tanto
quanto me marece, o grosso do alunado do Liceu provinha da rua da República e
adjacências do Varadouro, Roggers, Jaguaribe e entrada da Torre. Isso nos
turnos da manhã, onde estudavam os mais jovens, e tarde, reservada às moças. A
composição social da noite mudava porque, como os Pio X e Lurdinas retardaram o
colegial, as classes média-média e média alta valiam-se do Liceu. A saída deste
convertia-se em verdadeiro espetáculo, principalmente à tardinha, animando o
footing da Lagoa.
Como
pelo início dos anos cinqüenta, a cidade só dispunha de uma escola de ensino
superior – a Faculdade de Ciências Econômicas que prolongava a antiga Academia
de Comércio – o corpo docente do Liceu – anos depois recrutado pela
Universidade – era de primeira ordem. Para tanto contribuía seu reduzido número
– o Liceu não era colégio de massas – e os vencimentos, equivalentes a promotor de
terceira entrância.
Tem-se
ressaltado a qualidade dos docentes, o que era um fato, mas a identificação dos
programas com a realidade era pequena. Tal se devia à estria clerical dos mestres
escolas, o que José Rafael de
Menezes situou com exatidão em História do Lyceu Paraibano(1983).
Vinculados à chamada Igreja tridentina, esses professores seguiam os antigos
padrões de ensino – tradicionalistas e luso-coimbrãos – com forte acento lusitano, em literatura, europeista em
Geografia e História e classicistas em línguas estrangeiras.
Quando
do suicídio de Vargas, em 1954, o lente de Latim cimentou que tínhamos sorte
porque a prova estava adiada. Esse
não foi o caso da turma vizinha onde o professor de História – famoso pelas
aberturas de espírito – pôs-se a explicar a tragédia.
Tal
nos remete à dicotomia existente na docência entre clericalistas e
livres-pensadores, geralmente liberal-maçônicos. A distinção deve ser encarada
com cuidado porque o mais maçônico, de Canto Orfeônico, era profundamente
reacionário. Ainda assim, enquanto a ala clerical alinhava bom número de padres
e solteironas vinculadas à Igreja, os liderais-maçônicos pontificavam com
Aníbal Moura, Aurélio Albuquerque,
Francisco Pacote, Manoel Coutinho, Afonso Pereira, Severino Pimentel, Diógenes
Setti Sobreira, Oswaldo Miranda, e, principalmente Olívio Pinto, esquerdizante.
Estes eram os de minha predileção.
O
choque entre os dois grupos sobreveio em 1953, no enquadramento procedido pelo
Governo José Américo. Com o ultramontanismo em declínio, seus oponentes
predominaram nas listas, o que levou nossa professora de Francês – ex-noviça,
casada com ex-seminarista – a protestar, ruidosamente, em classe.
Entrosado
com os treze cinemas da cidade, clubes (Cabo Branco, Astréa, Voluntárias,
AABB), campeonatos de futebol do campo do Cabo Branco e programas de auditório
da Rádio Tabajara, o Liceu assemelhava-se a um centro cultural. Essa a
razão por que seu auditório, dotado de púlpito e piano de cauda, abrigava peças
de teatro, sessões de música, orfeões, concursos de oratória e conferências.
Destas, as mais famosas foram as proferidas por Carlos Lacerda, em 1951, Joracy
Camargo, em 1953, e Tristão de Athayde, em 1955. Quando desta última, eu já
cursava o primeiro clássico mas nossos professores não nos orientaram a
comparecer. Como resultado, nunca conheci, pessoalmente, ao doutor Alceu.
Tanto
quanto a sirene da fábrica Matarazzo, na Ilha do Bispo, o relógio do Liceu
roteirizava a vida da cidade. Ele também marcava nossas aulas, das sete às onze
e quarenta pela manhã, treze às dezessete e quarenta e cinco, à tarde, e das
dezoito e vinte às vinte e duas e dez, pela noite. As da manhã e tarde tinham
duração de cinqüenta minutos, mas as da noite só quarenta. Internamente nos
regíamos por um sino, tocado com precisão britânica. Ele ficava junto ao
babinete do dentista que se chamava dr. Álvaro, mas nunca aprendi seu
sobrenome. Como trazia na bata as iniciais A.O., a gente o taxava de Amigo da
Onça, personagem humorístico do chargista Péricles, da revista O Cruzeiro.
Sem ainda os prédios do Instituto de
Educação(1955) e Faculdade de Filosofia(1956), a praça de esportes era enorme e
albergava sessões de ginástica, competições de atletismo e jogos de futebol,
vôlei e basquete, além da habitual pelada, disputada com bola de
borracha ou macaíba. A educação física tinha feição conservadora e buscava a
eugenia da raça, no esquema do Estado Novo de Vargas. Nosso acesso a suas sessões
era assegurado através dos exames biométricos realizados pelo médico Giacomo
Zaccara, integralista, fomentador do esporte operário e colegial. O exame
limitava-se à batida de um martelinho no joelho de cada aluno.
Entrosado
com a comunidade, o Liceu abrigava outros serviços côo o FISI, que assegurava
leite gratuito, às nove horas da manhã, no esquema da UNICEF, e o laboratório
de meteorologia que funcionava na parte superior do edifício. Diariamente, o
diretor Orlando Vasconcelos ia lá testar os aparelhos. Ainda alcancei a farda
completa de cáqui, palito e gravata, costurada pela Alfaiataria Grisi, mas esse
modelo foi extinto em 1953 para predominância dos eslaques, bem mais baratos. O
governador José Américo responsabilizou-se pela mudança.
A
politização era débil. Apesar dos esforços de líderes como o atual prefeito de
Santa Rita Marcos Odilon Ribeiro Coutinho, egresso da Escola Comercial
Underwood, de dona Osmarina Carvalho, as entidades classistas revelavam atuação
específica. Tanto a Vanguarda Estudantil da Paraíba (VEP), de Márcio Airton,
como a União Estadual dos Estudantes da Paraíba (UEPB), dos irmãos Rabay,
incentivavam os chamados esportes de salão – ping-pong, botão e xadrez – e
apresentavam reivindicações corporativas ligadas a abatimentos nos transportes
coletivos, cinema e circos, estes com espetáculos regulares na Lagoa.
Os
estudantes do Liceu valiam-se muito da Biblioteca Pública, com estoque de
livros bem melhor que a do colégio. Isso também se verificava, em face da
proximidade da Biblioteca da General Osório da Casa do Estudante que,
localizada na rua da Areia, acolhia os estudantes do interior. A quase totalidade estudava no Liceu. De 1955
em diante, eles organizaram a Festa da Mocidade, na patê da Lagoa, oposta ao
cassino. Lá se exibiam artistas de fora
e da terra, como o mulato Zacarias, o Zaca, cantador de emboladas.
O
apoliticismo estudantil favorecia a direita que chegou a dispor de base de
massas no Liceu. Eram os aguais-brancas do integralismo tupiniquim cuja
bandeira exaltava nacionalismo tipo verdeamarelista. Posteriormente, acompanhando o plano nacional, esse
verdeamarelismo guinaria para a esquerda, mas, aí, já nos encontrávamos nos
anos sessenta.
Estudar
no Liceu dos anos cinqüenta assegurava status e as estrelas do curso colegial, bem como as
fitas do ginásio, eram ostentadas com orgulho. Essa a razão pela qual as
principais manifestações cívicas e religiosas do período contavam sempre com
contingentes do estabelecimento da avenida Getúlio Vargas.
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