sexta-feira, 20 de julho de 2012

O Liceu Paraibano no Túnel do Tempo(1951/57) Por José Octávio de Arruda Mello




José Octávio de Arruda Mello, historiador de ofício, integrante dos IHGP e APL, colaborador de A União, editor de Revista do UNIPÊ. Autor de História da Paraíba – Lutas e Resistência (2ª impressão da 10ª ed.,2007).

         Visto à distância, o Liceu Paraibano, onde estudei, cursando os ginásio e clássico, de 1951 a 57, assemelha-se a um túnel – o túnel do tempo.
         Atravessando-o, nele ingressei guri, aprovado em disputado exame de admissão, e saí homem feito ou quase isso, sete anos depois. Esse conduto foi também o da cidade, que se deslocou do centro para a praia, pela porta do Jardim Miramar, instalado entre 1949 e 50, e da sociedade pessoense, que transitou do patriarcalismo das elites agrárias para a classe média dos estamentos urbanos.
foto de o norte.com         

Várias entidades, como os institutos de previdência, dominantes no período, colocaram-se a serviço dessa transição e o Liceu – rebatizado Colégio Estadual de João Pessoa, devido a seu homônimo de Campina Grande, em 1953 – foi uma delas.
         Não era, como se tem propalado, estabelecimento de pobres, mas de classe média – média-média, e, sobretudo, média-baixa. O povão dos bairros desasnava nos grupos escolares e ficava por aí mesmo. Já as elites patrimoniais valiam-se do Diocesano Pio X – que rivalizava com o Liceu nos desfiles escolares e jogos estudantis – e Colégios Lurdinas e Nossa Senhora das Neves, estes reservados às moças.
         O excelente livro de Jean Blondel – As Condições da Vida Política do Estado da Paraíba (1957,94) – delineia a cidade de João Pessoa e Estado da Paraíba da época, sendo este de natureza algodoeiro-pecuária e açucareira. Os bairros da prmeira compreendiam o Centro – Varadouro(Comércio), Tambiá, Trincheiras, Montepio, Roggers e Cordão Encarnado – Jaguaribe, Torre/Santa Júlia, e os arrabaldes da Ilha do Bispo, Varjão, Cruz das Armas, Oitizeiro e Mandacaru. Os distritos intitulavam-se Gramame, Vila do Conde, Alhandra, Pitimbú, Acaú e Cabedelo a que se incorporava a aglomeração de Tambaú.
         Tanto quanto me marece, o grosso do alunado do Liceu provinha da rua da República e adjacências do Varadouro, Roggers, Jaguaribe e entrada da Torre. Isso nos turnos da manhã, onde estudavam os mais jovens, e tarde, reservada às moças. A composição social da noite mudava porque, como os Pio X e Lurdinas retardaram o colegial, as classes média-média e média alta valiam-se do Liceu. A saída deste convertia-se em verdadeiro espetáculo, principalmente à tardinha, animando o footing da Lagoa.
         Como pelo início dos anos cinqüenta, a cidade só dispunha de uma escola de ensino superior – a Faculdade de Ciências Econômicas que prolongava a antiga Academia de Comércio – o corpo docente do Liceu – anos depois recrutado pela Universidade – era de primeira ordem. Para tanto contribuía seu reduzido número – o Liceu não era colégio de massas –  e os vencimentos, equivalentes a promotor de terceira entrância.
         Tem-se ressaltado a qualidade dos docentes, o que era um fato, mas a identificação dos programas com a realidade era pequena. Tal se devia à estria clerical dos mestres escolas,  o que José Rafael de Menezes situou com exatidão em História do Lyceu Paraibano(1983). Vinculados à chamada Igreja tridentina, esses professores seguiam os antigos padrões de ensino – tradicionalistas e luso-coimbrãos – com forte  acento lusitano, em literatura, europeista em Geografia e História e classicistas em línguas estrangeiras.
         Quando do suicídio de Vargas, em 1954, o lente de Latim cimentou que tínhamos sorte  porque a prova estava adiada. Esse não foi o caso da turma vizinha onde o professor de História – famoso pelas aberturas de espírito – pôs-se a explicar a tragédia.
         Tal nos remete à dicotomia existente na docência entre clericalistas e livres-pensadores, geralmente liberal-maçônicos. A distinção deve ser encarada com cuidado porque o mais maçônico, de Canto Orfeônico, era profundamente reacionário. Ainda assim, enquanto a ala clerical alinhava bom número de padres e solteironas vinculadas à Igreja, os liderais-maçônicos pontificavam com Aníbal Moura, Aurélio  Albuquerque, Francisco Pacote, Manoel Coutinho, Afonso Pereira, Severino Pimentel, Diógenes Setti Sobreira, Oswaldo Miranda, e, principalmente Olívio Pinto, esquerdizante. Estes eram os de minha predileção.
         O choque entre os dois grupos sobreveio em 1953, no enquadramento procedido pelo Governo José Américo. Com o ultramontanismo em declínio, seus oponentes predominaram nas listas, o que levou nossa professora de Francês – ex-noviça, casada com ex-seminarista – a protestar, ruidosamente, em classe.
         Entrosado com os treze cinemas da cidade, clubes (Cabo Branco, Astréa, Voluntárias, AABB), campeonatos de futebol do campo do Cabo Branco e programas de auditório da Rádio Tabajara, o Liceu assemelhava-se a um centro cultural. Essa a razão por que seu auditório, dotado de púlpito e piano de cauda, abrigava peças de teatro, sessões de música, orfeões, concursos de oratória e conferências. Destas, as mais famosas foram as proferidas por Carlos Lacerda, em 1951, Joracy Camargo, em 1953, e Tristão de Athayde, em 1955. Quando desta última, eu já cursava o primeiro clássico mas nossos professores não nos orientaram a comparecer. Como resultado, nunca conheci, pessoalmente, ao doutor Alceu.
         Tanto quanto a sirene da fábrica Matarazzo, na Ilha do Bispo, o relógio do Liceu roteirizava a vida da cidade. Ele também marcava nossas aulas, das sete às onze e quarenta pela manhã, treze às dezessete e quarenta e cinco, à tarde, e das dezoito e vinte às vinte e duas e dez, pela noite. As da manhã e tarde tinham duração de cinqüenta minutos, mas as da noite só quarenta. Internamente nos regíamos por um sino, tocado com precisão britânica. Ele ficava junto ao babinete do dentista que se chamava dr. Álvaro, mas nunca aprendi seu sobrenome. Como trazia na bata as iniciais A.O., a gente o taxava de Amigo da Onça, personagem humorístico do chargista Péricles, da revista O Cruzeiro.
         Sem ainda os prédios do Instituto de Educação(1955) e Faculdade de Filosofia(1956), a praça de esportes era enorme e albergava sessões de ginástica, competições de atletismo e jogos de futebol, vôlei e basquete, além da habitual pelada, disputada com bola de borracha ou macaíba. A educação física tinha feição conservadora e buscava a eugenia da raça, no esquema do Estado Novo de Vargas. Nosso acesso a suas sessões era assegurado através dos exames biométricos realizados pelo médico Giacomo Zaccara, integralista, fomentador do esporte operário e colegial. O exame limitava-se à batida de um martelinho no joelho de cada aluno.
         Entrosado com a comunidade, o Liceu abrigava outros serviços côo o FISI, que assegurava leite gratuito, às nove horas da manhã, no esquema da UNICEF, e o laboratório de meteorologia que funcionava na parte superior do edifício. Diariamente, o diretor Orlando Vasconcelos ia lá testar os aparelhos. Ainda alcancei a farda completa de cáqui, palito e gravata, costurada pela Alfaiataria Grisi, mas esse modelo foi extinto em 1953 para predominância dos eslaques, bem mais baratos. O governador José Américo responsabilizou-se pela mudança.
         A politização era débil. Apesar dos esforços de líderes como o atual prefeito de Santa Rita Marcos Odilon Ribeiro Coutinho, egresso da Escola Comercial Underwood, de dona Osmarina Carvalho, as entidades classistas revelavam atuação específica. Tanto a Vanguarda Estudantil da Paraíba (VEP), de Márcio Airton, como a União Estadual dos Estudantes da Paraíba (UEPB), dos irmãos Rabay, incentivavam os chamados esportes de salão – ping-pong, botão e xadrez – e apresentavam reivindicações corporativas ligadas a abatimentos nos transportes coletivos, cinema e circos, estes com espetáculos regulares na Lagoa.
         Os estudantes do Liceu valiam-se muito da Biblioteca Pública, com estoque de livros bem melhor que a do colégio. Isso também se verificava, em face da proximidade da Biblioteca da General Osório da Casa do Estudante que, localizada na rua da Areia, acolhia os estudantes do interior.  A quase totalidade estudava no Liceu. De 1955 em diante, eles organizaram a Festa da Mocidade, na patê da Lagoa, oposta ao cassino.  Lá se exibiam artistas de fora e da terra, como o mulato Zacarias, o Zaca, cantador de emboladas.
         O apoliticismo estudantil favorecia a direita que chegou a dispor de base de massas no Liceu. Eram os aguais-brancas do integralismo tupiniquim cuja bandeira exaltava nacionalismo tipo verdeamarelista. Posteriormente,  acompanhando o plano nacional, esse verdeamarelismo guinaria para a esquerda, mas, aí, já nos encontrávamos nos anos sessenta.
         Estudar no Liceu dos anos cinqüenta assegurava status  e as estrelas do curso colegial, bem como as fitas do ginásio, eram ostentadas com orgulho. Essa a razão pela qual as principais manifestações cívicas e religiosas do período contavam sempre com contingentes do estabelecimento da avenida Getúlio Vargas.

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